terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Nuvem de lágrimas

Saudamentos, caro leitor. Desculpe-me se acha que fiquei muito tempo sem trazer nada, talvez não saiba o que é ficar preocupado ou demasiadamente entretido com últimos acontecimentos da própria vida. Mas já venho cumprir minha cota.

2014, ao que nos consta, é um ano de mudanças. Como sempre, no mundo dos transportes, pra pior. Editais que retiram mimos do passageiro, carrocerias que empurram tecnologia de ponta à força, mais empresas sendo engolidas pelas grandes cabeças, ampliação do domínio das pinturas minimalistas, enfim. Por o presente ser ruim e, o futuro, escabroso, o melhor que se tem a fazer é recordar. É o que vou fazer hoje. Aliás, parece que é a única coisa que consigo fazer decentemente.

OBSERVAÇÃO: se não gosta de ônibus urbano ou de fabricação anterior a 2013, pode parar por aqui. Seu lugar é no Ônibus Brasil.


Todos que me conhecem sabem de minha aversão a praias, e que vou às cidades que as têm a fim de ver o que aparece no transporte coletivo, unicamente. Também tenho horror a preços altos, lembrando que Ilhabela é "o paraíso dos porcos ricos"    lá estão as hospedarias mais caras de todo o litoral Norte paulista, pra compensar a mais requintada faixa costeira, as grandes trilhas no que sobrou da Mata Atlântica e o simples fato de se estar em um lugar isolado do continente.

Tive uma grande amiga, Flávia Mendes, que nasceu e viveu lá por muito tempo; ela própria me disse, em uma oportunidade, que Ilhabela era isso mesmo: um refúgio pra ricaiada nojenta.

    Ih, olha só, o piá lembrando daquela guria do passado... Pára com isso, cara!

Mas é mesmo pra recordar. E ela vem a calhar na conversa por ter sido uma das razões que me induziram a visitar aquele lugar (não a principal), ato que, dadas as circunstâncias acima, pra mim seria algo como dar um tiro no pé. Aquela, em dezembro de 2011, era a segunda vez.

A grande motivação era cerca de cinco exemplares do Vitória, sendo que quatro deles foram os últimos a puxar linha em praticamente toda a beirola marítima do estado de São Paulo. Dois ou três ajudaram a fechar a conta da empresa, que saiu de circulação dois meses depois, tendo brigado nas últimas semanas (via liminar) com a nova operadora a ponto de ter apelado até pra catraca livre.

Flávia tinha pensamentos no futuro; eu, no passado. Os olhos dela brilhavam perante o moderno; os meus, diante do clássico. E um tentava mostrar ao outro que o seu lado era melhor, com inúmeras discussões    e até brigas. Ela se foi e ninguém venceu; porém, valeu ter debatido com ela e reconhecido que o Vitória podia ser excelente, mas tinha alguma coisa de errado por ser antigo.


Àquele momento, andar de Vitória era uma coisa que eu já não fazia há mais de nove anos. Sim, aquela empresa ruim e sua mania de aposentar carros ainda muito jovens. Até tinham me chamado para o feito, em um dos conhecidíssimos articulados da Metra, no entanto acabei não indo por conta de outras prioridades. Deu Ilhabela na cabeça porque a passagem por lá era garantida.

Na verdade, fui sem esperanças de encontrá-los, pois tentaram me tapear no ano anterior (ver aqui): um dos fiscais da finada viação deu a entender que o espécime jamais apareceria pra mim. Estava pra embarcar no Torino 1318, afinal, mesma mecânica daqueles CAIO sangrentos que tanto andei na infância; pelo menos audivelmente a nostalgia estaria garantida. E eis que o próprio apareceu. Chegou com jeitinho e soltou todo mundo pela porta da frente    sim, o embarque por lá era traseiro, na época.

Como seria uma chance sem igual, fui com tudo. Ao entrar, notava-se que ele já estava ligeiramente desgastado, ao observar detalhes como os corrimãos das cadeiras de fibra, carcomidos pela maresia, e o painel frontal, todo descascado (todavia, ainda tendo legíveis nome da empresa e prefixo, estilizados, como na pintura), com um espelho ex-cromado similar ao que usavam no Gabriela. Pra fazer contraponto, o motorista era um sujeito jovem e haviam câmeras instaladas no teto do salão.

Salão aquele dotado de fila única à esquerda, que acabava se tornando o lado preferido de quem transportava carga nas viagens.

A crítica que minha amiga tinha em relação ao carro...

   Pô, piá, de novo?! Já se passaram dois anos! Hoje tu tá morando aí em Pato Branco, cheio de guria linda aí de zóio ni tu, e tu nessa ainda?! Ah, vá pro diabo...


... era justamente ele ser "tão velho e acabado", só que minha queixa foi outra, e ainda sem ser exclusiva desse Vitória em questão. Isso quer dizer que brigamos de novo. Não é bem isso: quem brigou fui eu, com o batente do vidro, pra não cair da cadeira lisíssima (desse modelo)    e sem apoio de braço    durante a condução na avenida Riachuelo, que, como já contei noutra vez, além de ser de pista simples, é recheada de curvas fechadíssimas, aclives e declives.

No áudio, o que vai ficar claro é que o motorista, por conta da velocidade baixa, precisa enfiar o pé a todo o momento. Marcha lenta pra subir, freio-motor pra descer. A missão é mais fácil em um ônibus moderno (tudo bem, Flávia, nisso você tinha razão), tanto que, hoje, Ilhabela é recheada de convencionais grandes    o que era um pensamento tresloucado, àquela altura, se lembrado o carro que fez um strike motociclístico.

Foi pouco mais de uma hora de um passeio pra matar a saudade. Difícil ter que esconder a felicidade do momento, olhar em volta e não se lembrar de quando se passava debaixo da roleta, de dona mamãe dizendo que sentar na última fila fazia o "bondão" embicar, entre outras coisas.


OBSERVAÇÕES: após encerrar os trabalhos, em março de 2012, apenas alguns dos veículos que compunham a frota da ilha foram encontrados. Parte dos Torino 1418 opera escolar em Foz do Iguaçú/PR, enquanto os micros Piá hoje rodam em Rio Grande/RS. O mais próximo que se chegou dos Vitória foi um dos dois Torino 1318, deles, mesmo, nada foi encontrado até o momento.

E até a próxima.